Uma história de coragem e união, em que o orgulhoso povo da Serra dos Milhafres se insurge contra as políticas de um Estado opressor.
Figura 1. "Quando os lobos uivam" de Aquilino Ribeiro.

Fonte: Autoria própria.
Antes de começar a análise da obra, dedique-se um momento a refletir sobre um nome: Aquilino Ribeiro! Saboreie-se o mel das suas palavras e reflita-se sobre a enciclopédia presente no mundo literário que se circunscreve à sua obra. Pois essa é a essência de Aquilino Ribeiro. O mestre Aquilino!
Qualquer oportunidade para beber do doce vinho das palavras do mestre é ideal. Por esse motivo, não perdi mais do que o tempo de um pestanejar a decidir sobre qual obra abordar. Logo eu, como orgulhoso Beirão, nascido e criado no distrito de Viseu, que tenho no mestre Aquilino uma herança partilhada com as gentes da minha terra.
Como se essa não fosse razão suficiente para me debruçar sobre a obra “Quando os Lobos Uivam”, acresce a inspiração da luta pela liberdade que deve surgir em qualquer português aquando do dia 25 de Abril, em especial num ano em que se celebram 50 anos da Revolução dos Cravos. Esta observação não surge por acaso, tratando-se de uma obra que foi alvo da censura do Estado Novo, pela sua critica a políticas que condenavam as populações rurais a uma situação de maior miséria e opressão.
Esta era a natureza de Aquilino Ribeiro. Republicano convicto, batalhou pela liberdade em todas as suas formas. Foi um elemento participante nos acontecimentos que levaram ao fim da Monarquia, quando o povo português sofria com a ditadura de João Franco, legitimada por um Monarca inativo e amedrontado. Rejubilou com a força da causa Republicana durante a primeira república, que antecedeu o período da ditadura militar de 1926. Lutou contra a opressão de um Estado legitimado pela constituição de 1933, que atentava contra a liberdade e a autonomia do seu povo. Aquilino Ribeiro, cujas obras são poesia em forma de prosa, com a sensibilidade de um poeta e dureza de um beirão orgulhoso, não ficava indiferente às políticas que ameaçavam o sustento dos mais desfavorecidos, principalmente dos seus conterrâneos, e usava a palavra com mestria para contestar os seus autores.
Figura 2. Aquilino Ribeiro.

Fonte: Público. https://www.publico.pt/2023/05/09/culturaipsilon/noticia/geografia-livros-gastronomia-aquilino-ribeiro-60-anos-morte-escritor-2049052
Aquilino Ribeiro, nas suas obras, demonstra ser um profundo conhecedor da fauna e da flora. Não seria, então, de esperar que esta obra fosse diferente. O mestre Aquilino retrata na perfeição a realidade do mundo rural em Portugal no século XX, levando o leitor a viver uma experiência imersiva. A caracterização do meio envolvente e dos diversos animais que se encontravam, e em muitos casos ainda se encontram, nas aldeias do coração do país é feito com tamanha perfeição, que nos sentimos a ver as lebres a saltar pela floresta, com as serras do interior no horizonte.
Esta é uma história de inconformismo, cuja “cáfila” de aldeães se manifesta em uníssono contra as amarras do Estado opressor, selvagens e indomáveis, como lobos que uivam em matilha. O Estado impunha novas leis de reflorestação que consistiam na apropriação de terrenos na Serra dos Milhafres, com a promessa de retorno para a população num prazo de 15 a 20 anos. Esta imposição não agradava às populações, que dependiam da serra para o seu sustento e viam nesta manobra uma ameaça à dinâmica a que estavam acostumados. A manifestação coletiva retratada por Aquilino Ribeiro permite ao leitor situar-se no contexto da época, relativamente ao sentimento da população face à realidade que vivia. Havia um claro desejo de revolta, de combate contra as amarras que os líderes impunham no povo. E, pela vida pessoal do mestre Aquilino, não haveria melhor transmissor desse sentimento do que Aquilino Ribeiro, que sempre lutou pela liberdade e pelos direitos que vários regimes tentavam retirar à população. Esta revolta do povo contras as políticas do Estado é, portanto, um retrato da visão pessoal do autor e das suas intenções de mudança.
Como seria de esperar, a reação do Estado às manifestações do povo foi o encarceramento de todo e qualquer suspeito da autoria, efetiva e moral, da revolta. Sendo também característico do sistema judicial da época, não havia uma preocupação pelo apuramento das responsabilidades, castigando os culpados e os inocentes, sem que isso fosse motivo para perder o sono. A premissa era simples: era imperativo associar estes homens ao mais vil dos demónios, o comunismo! Foram muitos os argumentos de defesa pelos inocentes (e também pelos culpados da manifestação violenta), mas, naturalmente, o Estado não podia deixar impunes estes adoradores de Moscovo, quais bolcheviques preparados para colocar o país a ferro e fogo. O julgamento decorreu em simultâneo com o de um grupo de operários de uma vila, que se insurgiam contra os seus patrões, por terem sido servidos uma refeição obrigatória que diziam envenenada, levando à morte alguns dos seus companheiros. Naturalmente, contra o poder da riqueza dos patrões, num país governado pelo fascismo, estes trabalhadores foram castigados pelo tribunal, cometendo o crime de greve, sem que se perdesse um minuto para averiguar as responsabilidades dos patrões pelo envenenamento dos seus trabalhadores. A história destes operários foi o recurso utilizado por Aquilino Ribeiro para retratar o poder dos ricos face à classe trabalhadora na época do Estado Novo.
A pena de prisão foi devastadora, mas passa muitas vezes despercebida a condenação que a acompanha, que hipoteca o futuro dos condenados e seus familiares. A esta triste realidade acrescem as circunstâncias profundamente injustas que levaram ao encarceramento. Esta era a realidade de quem era vítima do autoritarismo do Governo da época. Infelizmente, é um retrato das circunstâncias a que estavam sujeitos os condenados durante o “reinado absolutista” do Estado Novo. Muitas vezes presos por tentarem expressar as suas opiniões, as suas bocas eram tapadas em prisões desumanas, que os condenavam também a um futuro isento de esperança. Pois era a miséria um dos veículos da imposição do poder absoluto dos governantes.
A história de “Quando os Lobos Uivam” acaba com o retrato de uma realidade demasiado atual, tanto que poderíamos acreditar que se tratava de uma obra contemporânea. A desertificação da aldeia onde decorrem muitos dos acontecimentos, com as famílias a instalarem-se em outras paragens, deixando os seus terrenos e propriedades ao abandono, permite um paralelismo com a situação atual das aldeias do interior do país. Estes locais que, por força do envelhecimento da população e da procura de emprego nos principais centros, estão hoje, pelo menos, reduzidos a alguns solitários resistentes à devastação demográfica.
As questões metafísicas carregam um grande peso de incerteza, sem sabermos o que nos reserva findada a nossa passagem por esta massa terrestre. Não obstante, espero que o mestre Aquilino Ribeiro, esteja onde estiver, regozije com o prazer que proporcionou a um jovem, assim me considero, leitor. Acredito que sim! Pois mais do que o reconhecimento coletivo, nada faz sorrir um artista como ver a admiração nos olhos de alguém que contempla a sua obra. Este artigo, mais do que um artigo, é uma carta a Aquilino Ribeiro. Uma carta de agradecimento e admiração. Pela sua coragem, por não se deixar calar, por ter posto o medo de parte, essa que era a arma do regime, e ter colocado no papel o seu sentimento de revolta. Este era Aquilino Ribeiro! Um eterno corajoso.
CURIOSIDADE
Na RTP Play está disponível a série "Quandos os Lobos Uivam", com um vasto leque de nobres atores portugueses, onde podes ficar a saber mais sobre esta obra literária.
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